Desde tenra idade, ela julgava que a humanidade havia perdido a capacidade de, verdadeiramente, se expressar com a linguagem das palavras. Não era porém um processo de novalíngua, como em Orwell, e nem havia um grande irmão por detrás: era, simplesmente, algo mais complexo e cruel.
Em algum ponto da história, a palavra cadeira passou a significar apenas, e esse era o ponto, a ilustração do objeto desejado, e nada mais. O malabarismo de palavras, que alguns já chamavam poesia, tinha então seu fim declarado, pois lhe era indispensável que a palavra cadeira então pudesse ter umas dezenas de significados. Poderia, então, ser confundida, por exemplo, com o objeto colmeia, ou então com o sentimento da dor (num manuscrito antigo, e isso somente ela sabia, lia-se "Tire alguém a cadeira de minhas costas, pois passam os anos e sou agora infeliz").
Mas, dadas as circunstâncias, ela se dera o papel de cruzada da linguagem. Todos os dias, tão logo acordada, tinha em mãos seu caderno de capa dourada, cujo número de páginas beirava o infinito, e ali escrevia repetidamente uma única palavra, à exaustão, até que suas bordas semânticas começassem a desfocar. Foi assim, por exemplo, que descobriu na palavra chaminé a capacidade de significar centro e trinta e duas coisassentimentosações diferentes.
O problema foi que, depois de seis anos dessa prática, ela percebeu que isso não bastaria. De fato, sua língua materna não bastaria, bem como não bastariam as outras seis línguas que aprendeu em seus diálogos silenciosos, durante a execução dos mesmos seis anos.
Tal descoberta foi sentida e ela sofreu de uma intensa misantropia por tantos dias quantas páginas brancas sobravam em seu caderno. Trancada em sua torre, se pôs a procurar nas línguas inexistentes a real possibilidade da comunicação, mesmo que o ouvinte não passasse de sua própria sombra. Não sabia sequer se ela entendia suas profetizações, se entre ela e a sombra havia um código comum, ou se insistia em ficar aos seus pés por puro respeito e devoção ao que de si havia de mais real.
Porém, o processo de análise combinatória levado a cabo nos primeiros anos logo mostrou-se infrutífero. Existia entre as letras, e isso somente ela notara, uma certa força de atração que fazia com que certas letras fossem bem sucedidas por umas e não por outras. Tal constatação a fez concluir a verdade última: existe uma palavra, uma tal ordenação de certas letras, cuja tamanha é a harmonia entre suas forças formantes, e cuja tamanha é sua gravidade interior, que seu significado extrapola o mundo. A sua simples pronúncia por uma boca mortal faria os mares se abrirem, os céus baixarem à terra e a chuva desabar por mais de seis meses (estava portando comprovada a sua existência frente aos livros santos dos deuses).
Consumida por essa busca infinita, hoje ela habita junto a mim. Seus olhos carregam o peso do tempo e seus cabelos reluzem a eternidade. Passa seus dias na velha cadeira de balanço em frente a janela, fitando o céu. No começo, considerei que esperava que ali, em meio as nuvens, surgissem as letras da palavra querida. Depois, realizei que apenas lhe sorriam as suas formas de algodão e era só.
A cada seis anos, percebo-a consternada, o velho caderno a mão, as páginas puramente brancas. Isso lhe dói, e sempre me parece que ela não resistirá, que sua pena tombará ao chão, enquanto o caderno, carrasco, permanecerá para sempre aberto, imaculado, como um sinal derradeiro de sua busca infinita, a qual tanto desgastara sua eternidade.
Mas depois, quando ela finalmente adormece, vejo-a deitada em brancos linhos e então percebo que, se sua pesquisa fora inútil, não o fora por ser infinita, mas antes, pelo contrário: era finita, e seu fim se sobrepunha ao seu próprio início. Quando sonhava podia, então, ser feliz.
sábado, 27 de março de 2010
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a história de narrar um conto seu continua de pé? então eu quero narrar esse.
ResponderExcluirescrevey ralph waldo emerson, em "the poet", language is fossil poetry; "For though the origin of most of our words is forgotten, each word was at first a stroke of genius, and obtained currency, because the moment it symbolized the world to the first speaker and to the hearer. The etymologist finds the deadest word to have been once a brilliant picture".
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