segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Sempre que podia

Sempre que podia, metia os pés no chão. E fora assim desde a infância. Se lembrava das idas ao sítio da bisavó, onde, na trilha aberta pelo trator, sentia o prazer de ser o primeiro a, com um impulso futebolístico, jogar para cima as sandálias coloridas, e sentir a terra seca que cercava seus pordebaixos, entrava nas frestas dos dedos e sujava-lhe (coloria-lhe?) as palmasbaixas. (colorido esse que, é sabido, logo se estenderia às demais partes de sua pele, de suas vestimentas e cabelos).

Não entendia, assim, as pessoas que insistiam em calçar, mesmo nas horas incalçáveis. Lembrava do horror das pessoas, bichos de pé, geográficos, um mileum de motivos para se proteger contra a única coisa que poderia ser achada em toda e qualquer parte do planeta. Não entendia, tampouco, as moças que, sob a água quente do chuveiro, lixavam suas solas com afinco. As texturas deixadas de lado, um grande gate associado aos pés, de forma que as sutilezas detridas, em prol de um pé, diziam, mais elegante.

Pensava hoje, a televisão ligada, a matéria sobre choques elétricos. O especialista recomendava usar as sandálias de borracha (não parecia haver indicações quanto aos momentos a usá-las, apenas usá-las). Esta era, sabia, a prova última da eficácia dos pés ao chão. Não que eles não fossem, era verdade, danosos em casos como os apontados pelo eletricista: podia-se evitar choques no banheiro, ao manusear instrumentos elétricos e etecétera; mas o que mais seria assim evitado? Essa pergunta, que não precisava realmente de resposta, servia-lhe como conclusão aos desvaneios que já transcorriam os comerciais televisivos, a matéria jornalística findada.

Sua mãe dizia que pisar na terra descarregava as energias. Boas ou más, energias gastas precisam sempre ser descarregadas. E se o mero contato com uma matéria tão matéria quanto qualquer outra que há no mundo teria, efetivamente, essa função já não poderia dizê-lo.

Sempre que podia, metia os pés no chão. E assim fora, e assim continuaria a ser. Nas ruas do simpático bairro desasfaltado; no sítio da, ainda viva, bisavó; no campus universitário, tão propício; e em seu próprio quarto, onde guardava (era segredo) uma pequena caixa de madeira, que cheirava a humus e chuva: uma caixa cheia até a boca de terra preta, com marcas de pegadas número quarenta e dois, guardada docemente sobre o armário. Todos os dias, ao chegar em casa, ia ao quarto, onde já não se entrava de calçados, se esticava para alcançar a caixa, e ali, sentado em sua cama, repousava os pés por alguns instantes. Não era científico nem placebístico: era apenas bom, e isso bastava.

3 comentários:

  1. gostei daqui. fico feliz em saber que gostou do meu blog, como chegou nele? fiquei curiosa $:

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  2. isso me lembra um tiago de 4 anos passados: andando descalço pelo ibirapuera e pelo meio da rua com o tênis pendurado na mochila. (:

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  3. Oi!
    adorei seu blog.
    e esse texto é lindo!
    bjs
    Gabi

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