terça-feira, 11 de agosto de 2009

Ela chegou em casa

Ela chegou em casa, e o destino já era certo. Passos curtos, diretos, levavam ao banheiro. A porta fechada, o espelho sendo sua única testemunha. Apanhada no armário, a pequena tesoura fazia frio aos grandes dedos, que, aos poucos, se acostumavam com o seu aço. Logo, o primeiro tufo de cabelo caía, e caía também a primeira lágrima. Era assim que terminava, e devia assim sê-lo. Não que fosse, de certo, a primeira lágrima; mas era, havia convicção, a primeira dentre as últimas.

Assim sendo, todos saberiam. Mas não era isso. Não era uma questão se mostrar àlguém, de afirmar algo já afirmado. Não era uma questão de sobreaviso. Era, antes, uma questão consigo. Contíguo às orelhas, o novo corte se moldava ao rosto, branco, contrastante aos olhos, vermelhos. O sorriso desdobrava a cada nova fricção do aço, curta, direta, a cada novo volume de cabelo derramado à pia, que, quão mais ralo era, mais rala era a lágrima correspondente.

Não havia uma prédisposição estética para o novo corte. O que o moldava aliás, seus novos comprimentos e arestas, era o relacionamento que acabara, suas forças e dimensões. Terminado o namoro, caso, casamento, whatever, lá ia ela ao banheiro, tesoura à mão, cabelo ao ralo. Lembrava apenas uma vez de ter ficado próxima do careca, e a lembrança lhe trazia um certo arrepio juvenil. Já a gillete, guardada na gaveta, ansiava, por que não?, por uma necessidade maior, uma consolação a ser dada, mas que ainda não fora precisa.

Sorriu. E o espelho retribuía o sorriso, aprovando, como sempre, o novo corte. A tesoura retornava à gaveta, à espera. Estava bem. Deveria, sempre, estar bem, pois assim lhe parecia a vida: uma eterna renovação.

2 comentários:

  1. nunca tenho eu relacionamentos de várias sortes, mas os pelos da cabeça vêm e vão como se executasse por eles ritos de passagem... a morte de um pai pode raspar uma cabeça, a de uma mãe deixar a barba crescer. mudamos o rosto e externamos a nova tinta n'alma. de minha parte, tenho meus conflitos com a auto-imagem: nem sempre me reconheço em meus sonhos. mas o acordar não deixa de ser uma surpresa...

    boa ventura, meu grande amigo

    ResponderExcluir
  2. A ideia é tornar a publicação de seus textos prática recorrente?

    ResponderExcluir