quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Era aquela época do ano

Era aquela época do ano a que chamam inverno. E dela já se passava quase o fim, quando sentiu-se a necessidade de um marco, uma baliza, que dissesse 'a, deixamos o inverno, e agora temos a primavera!'. Tal necessidade floresce no interior dos homens, e, não se sabe como, traz-lhes os sentimentos mais antológicos.

Não fora, contudo, o surgimento de bromélias ou girassóis, nem o brotamento das flores primaveris que fazeriam tanta a felicidade dos beijaflores. Não fora, tampouco, o sol, que ardia cada vez mais, nem o frio, cada vez mais ameno nas noites solitárias. Não foram, sequer, as liquidações dos shoppings centers, nem o pó juntado às roupas negras e pesadas que pendiam, já, no fundo dos guardarroupas.

Não fora. E a opção era mais simples, e devia sempre sê-la.

O vento, não bem invernal, soprava nos rostos das pessoas (o que não nos importava), fazia bater os portões de ferro do bairro (o que tampouco nos importava), e tremulava a bandeira hasteada com tanta idolatria (o que sequer nos importava). O vento, não bem invernal, lavava as calçadas e ruas das folhas secas (o que não bem nos importava), balançava os cumes das árvores mais altas (o que já nos importava um pouco), e, sobretudo, os galhos frondosos da árvore que ficava em frente da casa (apenas o que, deveras, nos importava).

O vento, não bem invernal, anunciava o próprio inverno, em seu estágio mais seu: seu próprio fim.

E ela, a quem o inverno chamaria 'algoz primeiro', e a quem a primavera, era sabido, chamaria 'rainha do alvorecer', calçava os sapatos e corria do quarto do fundo, onde passava suas tardes, logo ouvia os primeiros uivos daquele que não era bem invernal. E o vento levava abaixo centenas de pequenas vagens, secas e agonizantes, separadas de suas porções vida, a que alguns chamam 'semente'.

Uma a uma, as hélices cônicas cricrilejavam sob os tênis insaciáveis da pequena. E ali havia um jogo (e ali deveria sempre haver): tão logo caiam no chão, tão logo eram as vagens pisadas; já àquelas que num primeiro momento tombaram de seu trono inalcançável era dado um momento a mais de sobrevida, como uma indenização compensatória dada antes da ofensiva final. Outro jogo se dava também quanto ao número de estalos que uma única vagem poderia oferecer: cultuavam-se aquelas que, após duas grandes pisadas, ainda ofereceriam um cricrilejo último.

E então, juntando-se aos pássaros que não deixavam de assobiar sobre a árvore da frente da casa, os estalos já soavam como sinos de uma antiga igreja. Sinos, sinais tão carregados de semanticismos e fé. Campanas essas que significavam (sabemos) um culto secreto, cujas provas deitavam agora sobre a rua, com seus pequenos fragmentos de material cricrilejante misturadas à terra. A menina olhava satisfeita. Estava feita sua própria sagração.

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