quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Ora, uma coisa é evidente



Ora, uma coisa é evidente: o Cosmo é um organismo vivo que se renova periodicamente. O mistério da inesgotável aparição da Vida é solidária à renovação rítmica do Cosmo. Por essa razão, o Cosmo é imaginado pela forma de uma árvore: o modo de ser do Cosmo e, em primeiro lugar, sua capacidade de regenerar-se infinitamente, é expresso simbolicamente pela vida da árvore.
(Mircea Eliade)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Sempre que podia

Sempre que podia, metia os pés no chão. E fora assim desde a infância. Se lembrava das idas ao sítio da bisavó, onde, na trilha aberta pelo trator, sentia o prazer de ser o primeiro a, com um impulso futebolístico, jogar para cima as sandálias coloridas, e sentir a terra seca que cercava seus pordebaixos, entrava nas frestas dos dedos e sujava-lhe (coloria-lhe?) as palmasbaixas. (colorido esse que, é sabido, logo se estenderia às demais partes de sua pele, de suas vestimentas e cabelos).

Não entendia, assim, as pessoas que insistiam em calçar, mesmo nas horas incalçáveis. Lembrava do horror das pessoas, bichos de pé, geográficos, um mileum de motivos para se proteger contra a única coisa que poderia ser achada em toda e qualquer parte do planeta. Não entendia, tampouco, as moças que, sob a água quente do chuveiro, lixavam suas solas com afinco. As texturas deixadas de lado, um grande gate associado aos pés, de forma que as sutilezas detridas, em prol de um pé, diziam, mais elegante.

Pensava hoje, a televisão ligada, a matéria sobre choques elétricos. O especialista recomendava usar as sandálias de borracha (não parecia haver indicações quanto aos momentos a usá-las, apenas usá-las). Esta era, sabia, a prova última da eficácia dos pés ao chão. Não que eles não fossem, era verdade, danosos em casos como os apontados pelo eletricista: podia-se evitar choques no banheiro, ao manusear instrumentos elétricos e etecétera; mas o que mais seria assim evitado? Essa pergunta, que não precisava realmente de resposta, servia-lhe como conclusão aos desvaneios que já transcorriam os comerciais televisivos, a matéria jornalística findada.

Sua mãe dizia que pisar na terra descarregava as energias. Boas ou más, energias gastas precisam sempre ser descarregadas. E se o mero contato com uma matéria tão matéria quanto qualquer outra que há no mundo teria, efetivamente, essa função já não poderia dizê-lo.

Sempre que podia, metia os pés no chão. E assim fora, e assim continuaria a ser. Nas ruas do simpático bairro desasfaltado; no sítio da, ainda viva, bisavó; no campus universitário, tão propício; e em seu próprio quarto, onde guardava (era segredo) uma pequena caixa de madeira, que cheirava a humus e chuva: uma caixa cheia até a boca de terra preta, com marcas de pegadas número quarenta e dois, guardada docemente sobre o armário. Todos os dias, ao chegar em casa, ia ao quarto, onde já não se entrava de calçados, se esticava para alcançar a caixa, e ali, sentado em sua cama, repousava os pés por alguns instantes. Não era científico nem placebístico: era apenas bom, e isso bastava.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Era aquela época do ano

Era aquela época do ano a que chamam inverno. E dela já se passava quase o fim, quando sentiu-se a necessidade de um marco, uma baliza, que dissesse 'a, deixamos o inverno, e agora temos a primavera!'. Tal necessidade floresce no interior dos homens, e, não se sabe como, traz-lhes os sentimentos mais antológicos.

Não fora, contudo, o surgimento de bromélias ou girassóis, nem o brotamento das flores primaveris que fazeriam tanta a felicidade dos beijaflores. Não fora, tampouco, o sol, que ardia cada vez mais, nem o frio, cada vez mais ameno nas noites solitárias. Não foram, sequer, as liquidações dos shoppings centers, nem o pó juntado às roupas negras e pesadas que pendiam, já, no fundo dos guardarroupas.

Não fora. E a opção era mais simples, e devia sempre sê-la.

O vento, não bem invernal, soprava nos rostos das pessoas (o que não nos importava), fazia bater os portões de ferro do bairro (o que tampouco nos importava), e tremulava a bandeira hasteada com tanta idolatria (o que sequer nos importava). O vento, não bem invernal, lavava as calçadas e ruas das folhas secas (o que não bem nos importava), balançava os cumes das árvores mais altas (o que já nos importava um pouco), e, sobretudo, os galhos frondosos da árvore que ficava em frente da casa (apenas o que, deveras, nos importava).

O vento, não bem invernal, anunciava o próprio inverno, em seu estágio mais seu: seu próprio fim.

E ela, a quem o inverno chamaria 'algoz primeiro', e a quem a primavera, era sabido, chamaria 'rainha do alvorecer', calçava os sapatos e corria do quarto do fundo, onde passava suas tardes, logo ouvia os primeiros uivos daquele que não era bem invernal. E o vento levava abaixo centenas de pequenas vagens, secas e agonizantes, separadas de suas porções vida, a que alguns chamam 'semente'.

Uma a uma, as hélices cônicas cricrilejavam sob os tênis insaciáveis da pequena. E ali havia um jogo (e ali deveria sempre haver): tão logo caiam no chão, tão logo eram as vagens pisadas; já àquelas que num primeiro momento tombaram de seu trono inalcançável era dado um momento a mais de sobrevida, como uma indenização compensatória dada antes da ofensiva final. Outro jogo se dava também quanto ao número de estalos que uma única vagem poderia oferecer: cultuavam-se aquelas que, após duas grandes pisadas, ainda ofereceriam um cricrilejo último.

E então, juntando-se aos pássaros que não deixavam de assobiar sobre a árvore da frente da casa, os estalos já soavam como sinos de uma antiga igreja. Sinos, sinais tão carregados de semanticismos e fé. Campanas essas que significavam (sabemos) um culto secreto, cujas provas deitavam agora sobre a rua, com seus pequenos fragmentos de material cricrilejante misturadas à terra. A menina olhava satisfeita. Estava feita sua própria sagração.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Ela chegou em casa

Ela chegou em casa, e o destino já era certo. Passos curtos, diretos, levavam ao banheiro. A porta fechada, o espelho sendo sua única testemunha. Apanhada no armário, a pequena tesoura fazia frio aos grandes dedos, que, aos poucos, se acostumavam com o seu aço. Logo, o primeiro tufo de cabelo caía, e caía também a primeira lágrima. Era assim que terminava, e devia assim sê-lo. Não que fosse, de certo, a primeira lágrima; mas era, havia convicção, a primeira dentre as últimas.

Assim sendo, todos saberiam. Mas não era isso. Não era uma questão se mostrar àlguém, de afirmar algo já afirmado. Não era uma questão de sobreaviso. Era, antes, uma questão consigo. Contíguo às orelhas, o novo corte se moldava ao rosto, branco, contrastante aos olhos, vermelhos. O sorriso desdobrava a cada nova fricção do aço, curta, direta, a cada novo volume de cabelo derramado à pia, que, quão mais ralo era, mais rala era a lágrima correspondente.

Não havia uma prédisposição estética para o novo corte. O que o moldava aliás, seus novos comprimentos e arestas, era o relacionamento que acabara, suas forças e dimensões. Terminado o namoro, caso, casamento, whatever, lá ia ela ao banheiro, tesoura à mão, cabelo ao ralo. Lembrava apenas uma vez de ter ficado próxima do careca, e a lembrança lhe trazia um certo arrepio juvenil. Já a gillete, guardada na gaveta, ansiava, por que não?, por uma necessidade maior, uma consolação a ser dada, mas que ainda não fora precisa.

Sorriu. E o espelho retribuía o sorriso, aprovando, como sempre, o novo corte. A tesoura retornava à gaveta, à espera. Estava bem. Deveria, sempre, estar bem, pois assim lhe parecia a vida: uma eterna renovação.